Cookies, consentimento e “interesse legítimo”: o dilema dos media portugueses

Fonte da imagem: Pixabay

Quem entra hoje no site de um jornal ou canal de televisão portugueses encontra quase sempre o mesmo ritual: antes de ler a notícia, surge um aviso a pedir “consentimento” para o uso de cookies. Até aqui, nada de novo — mas quando se lê com atenção, percebe-se que os dados do utilizador podem ser partilhados com centenas de parceiros publicitários, alguns com base no consentimento, outros com base no chamado “interesse legítimo”.

Este detalhe aparentemente técnico revela um problema maior. À luz da lei europeia, não é indiferente se o tratamento de dados assenta em consentimento ou em interesse legítimo. O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) prevê várias bases de legitimidade, incluindo o interesse legítimo. Mas existe outra norma, menos falada, que é decisiva neste contexto: a Diretiva e-Privacy, transposta em Portugal pela Lei n.º 41/2004. Essa diretiva estabelece que qualquer acesso ou armazenamento de informação no dispositivo de um utilizador — cookies, identificadores ou tecnologia semelhante — só é permitido mediante consentimento prévio, exceto quando for estritamente necessário para o funcionamento do serviço.

A consequência é clara: para cookies de publicidade, personalização de conteúdos, perfis ou estatísticas não essenciais, a única base válida é o consentimento. O interesse legítimo não pode ser usado para colocar cookies ou recolher identificadores no navegador. No entanto, os banners de muitos órgãos de comunicação social portugueses continuam a apresentar as duas opções, como se ambas fossem igualmente válidas.

Porquê? A resposta está no modelo de negócio. A imprensa online e as televisões vivem em grande medida da publicidade programática. Para isso, recorrem ao Transparency and Consent Framework (TCF) da IAB Europe, uma plataforma que uniformiza a recolha de consentimento e permite a comunicação automática das preferências do utilizador a centenas de fornecedores de anúncios. É uma solução que simplifica a vida dos publishers, mas que complica a do leitor: consentir é fácil, recusar é trabalhoso, e perceber realmente o que está em causa é quase impossível quando se fala em listas com “969 parceiros”.

A verdade é que muitas destas práticas subsistem porque a fiscalização em Portugal é limitada. Enquanto autoridades como a CNIL em França ou a AEPD em Espanha já aplicaram sanções a banners enganosos, a CNPD ainda não teve intervenções públicas de grande impacto nesta área. Esta ausência de pressão regulatória cria uma espécie de permissividade tácita que leva os media a manter o modelo, mesmo sabendo que caminham no fio da navalha.

No entanto, o cerco vai-se fechando a nível europeu. O Tribunal de Justiça da União Europeia, no célebre caso Planet49, deixou claro que o consentimento para cookies tem de ser livre, informado e inequívoco. A APD belga condenou o TCF da IAB Europe por não estar conforme ao RGPD, decisão confirmada pelo próprio TJUE. E, em vários países, os reguladores obrigaram os sites a ter botões de recusa tão visíveis quanto os de aceitação.

O dilema é evidente: de um lado, os órgãos de comunicação social precisam de receitas publicitárias para sobreviver num mercado cada vez mais difícil; do outro, a lei europeia exige uma proteção forte da privacidade e do consentimento do utilizador. Entre a necessidade económica e a conformidade jurídica, os banners atuais tentam esticar a corda ao máximo.

A questão já não é se este modelo vai ser questionado em Portugal, mas quando. Mais cedo ou mais tarde, será inevitável exigir aos media maior clareza, mais equilíbrio na recolha de consentimento e, talvez, explorar modelos de financiamento alternativos que não dependam de rastrear cada clique dos leitores.


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