A Direção da Associação Artigo 80 vem, por este meio, prestar esclarecimentos na sequência de várias reclamações que nos têm sido dirigidas por cidadãos preocupados com a recente atuação pública dos deputados André Ventura e Rita Matias, ambos eleitos pelo partido Chega.
- Contextualização
Na sequência de intervenções proferidas em sede parlamentar e posteriormente replicadas nas redes sociais, os referidos deputados divulgaram nomes próprios de crianças estrangeiras frequentadoras de estabelecimentos de ensino públicos em Portugal. A divulgação ocorreu no contexto de uma narrativa político-ideológica relativa a alegadas alterações demográficas no sistema educativo nacional, com especial enfoque em questões migratórias e identitárias.
Perante tal atuação, foram já desencadeados dois procedimentos autónomos por parte de entidades competentes:
- Um inquérito instaurado pelo Ministério Público;
- Um processo de averiguações aberto pela Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD).
Ambas as entidades atuam no estrito cumprimento das respetivas atribuições legais, sendo os processos em curso independentes entre si.
- Enquadramento jurídico: Proteção de Dados e Direito Penal
Nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), constitui dado pessoal qualquer informação que permita identificar, direta ou indiretamente, uma pessoa singular. A divulgação pública de nomes próprios, sobretudo se inserida num contexto que permita a associação a escolas, origens étnico-religiosas ou localizações geográficas, pode configurar tratamento ilícito de dados pessoais de menores.
Adicionalmente, o artigo 9.º do RGPD prevê uma proteção acrescida para categorias especiais de dados, incluindo dados que revelem a origem étnica ou religiosa. Quando nomes ou sobrenomes são utilizados de forma a inferir ou expor tais características sensíveis, pode estar em causa uma violação grave do regime europeu de proteção de dados.
No plano penal, os artigos 192.º (devassa da vida privada) e 240.º (discriminação e incitamento ao ódio) do Código Penal poderão ser aplicáveis, consoante o apuramento dos factos e a sua qualificação jurídica pelas autoridades competentes.
- Ponderação de direitos fundamentais
Importa, contudo, recordar que o direito à proteção de dados, embora qualificado como direito fundamental, não é absoluto. O próprio RGPD, bem como a jurisprudência nacional e europeia, reconhecem que este direito pode e deve ser conjugado com outros direitos fundamentais, nomeadamente com o direito à liberdade de expressão e de informação (cf. artigo 85.º do RGPD).
Esta ponderação assume particular relevância no caso concreto, uma vez que:
- As declarações foram proferidas no exercício de funções parlamentares, em plena Assembleia da República, espaço por excelência do debate democrático e do confronto de ideias;
- Os deputados em causa invocaram uma finalidade política e argumentativa, no quadro do seu mandato representativo;
- A Constituição da República Portuguesa confere aos deputados especial proteção quanto à liberdade de expressão política, incluindo a irresponsabilidade por opiniões e votos emitidos no exercício do mandato (artigo 157.º da CRP).
Tal não significa, naturalmente, que o exercício da liberdade de expressão em contexto parlamentar seja imune a qualquer forma de responsabilização, mas exige que a avaliação jurídica da conduta considere cuidadosamente o enquadramento democrático, funcional e constitucional em que os factos ocorreram, bem como o necessário equilíbrio entre os valores em presença.
- A posição da Associação Artigo 80
A Associação Artigo 80, conforme previsto no artigo 80.º do RGPD, tem legitimidade para representar titulares de dados e intervir em sua defesa sempre que estejam em causa violações ao regime de proteção de dados pessoais.
Face, porém, à existência de procedimentos formais em curso conduzidos pelas autoridades legalmente competentes — o Ministério Público e a CNPD —, entende a Direção que não se justifica, neste momento, uma intervenção direta e autónoma por parte da Associação.
A duplicação de diligências ou a superposição de intervenções poderá, em determinados contextos, comprometer a eficácia, coerência e celeridade do apuramento dos factos e da responsabilidade dos intervenientes.
- Compromisso de acompanhamento
A Associação Artigo 80 continuará, contudo, a acompanhar com atenção o desenrolar dos processos em curso e, caso se revele necessário, atuará no exclusivo interesse da proteção dos direitos fundamentais dos titulares dos dados.
- Considerações finais
A proteção de dados pessoais, em especial de menores, é um direito fundamental cuja violação pode assumir relevância jurídica grave. No entanto, a sua análise não pode ser feita de forma isolada ou abstrata, devendo ser ponderada em articulação com outros direitos constitucionalmente protegidos, incluindo a liberdade de expressão e a autonomia do debate político parlamentar.
A qualificação jurídica dos factos dependerá de uma análise rigorosa do contexto, da intencionalidade, da capacidade identificativa dos dados divulgados e da eventual existência de motivações discriminatórias, cabendo, nomeadamente, ao Ministério Público e à CNPD a sua aferição no decurso das investigações em curso.
A Associação Artigo 80 reafirma o seu compromisso com a defesa dos direitos fundamentais dos titulares de dados, com base no rigor jurídico, no respeito pelas instituições e na promoção de uma cultura de responsabilidade, privacidade e cidadania.
Senhora da Hora, 7 de agosto de 2025
A Direção da Associação Artigo 80